Por Paulo Scott
Tempo atrás escrevi que não gostava de futebol, que não compreendia como alguém que tivesse um mínimo de inteligência pudesse gostar de futebol — a assertiva, evidentemente, se tratava de uma provocação. Pessoas, independentemente do seu grau de inteligência ou de patetice, seja lá o que a hierarquização das inteligências ou patetices signifique, têm o direito de gostar de um esporte tão fascinante (o esporte que mais mobiliza hipsters e intelectuais de toda ordem nos Estados Unidos da América do Norte no momento é o futebol), minha provocação tinha outro alvo: esta grande máquina de enganar que é o esquema inventado e constantemente aprimorado pelos cartolas do futebol no Brasil e no Mundo.
Pessoas sofrem, gastam até o último centavo do seu dinheiro e até matam por algo que é escancaradamente manipulado por meia dúzia, que beneficia financeiramente apenas meia dúzia. Embora a paixão pelo Colorado prevaleça em momento e outro da minha medíocre existência (cheguei a comprar aquela camiseta da edição especial “Campeão de tudo”), faço o que posso para não perder um segundo do meu tempo com essa bobagem que é fazer do futebol uma religião e, quem sabe, no saldo geral, salvar minutos, horas, turnos, dias para empregá-los, por exemplo, na missão de reduzir a lista imensa de livros que pretendo ler antes que chegue ao fim minha participação por aqui — nesta “arena da vida”, diria alguém.
Algo que aprendi na “arena da vida” foi: não duvidar do poder do circo e da boate. Futebol é circo e também é boate (é o lúdico desesperado e é zorra total), uma ferramenta eficaz garantindo que um bando de gente consiga atravessar a semana e a derrocada psicológica que aguarda boa parte da humanidade nas tardes e nas noites de domingo. Pessoas precisam se apoiar em algo e fingir que tudo está bem — não dá para tapar o sol com peneira, pelo menos não o tempo todo. Por que não o futebol? Por que não a chance de sonhar com a vitória que, no final das contas, é um tipo de truque perfeito que faz o vitorioso imaginar que é mais especial do que o outro? Por que não o maniqueísmo irracional tão propício da disputa em perspectiva simplificada?
A Copa do mudo foi o grande turn point na narrativa deste ano — quem trabalha com roteiro de cinema sabe a razão de dividir a narrativa ao meio e encontrar os dois grandes pontos de virada, de saber tirar proveito disso —, e eu poderia continuar falando sobre as garantias fundamentais que mais uma vez foram completamente desrespeitadas em solo brasileiro (os jovens de pele escura das periferias chamam isso de constância). A novidade, uma das tantas, foi o alinhamento de governantes em todos os níveis de governo arquitetando um estado renovado de repressão. Pois é, ninguém escapa. O salvador da pátria não existe, nunca existiu. Ainda assim não resistimos ao conforto do papel de bons torcedores, ingênuos e esperançosos, apesar de todas as evidências — uma parte corre para um lado e o restante, quase na mesma proporção dos seus opostos, corre para o outro, e tudo bem se o resumo do chilique geral, de um lado e de outro, for só descabelamento e gritaria, porque depois será a segunda-feira e será o marasmo, de novo.
Na semana passada chegou às minhas mãos um exemplar bem castigado — benditos sejam os exemplares castigados — de um dos livros que mais influenciaram o meu modo de escrever, um livro do qual (tenho até vergonha de confessar) eu mal lembrava, é o Eu falo dos que não falam, uma seleção de poemas do alemão Hans Magnus Enzensberger, publicada no Brasil em mil novecentos e oitenta e cinco pela Editora Brasiliense. Graças à Morgana, que o conseguiu — a forma e a razão como o livro chegou até ela renderiam uma coluna à parte, acreditem — e perguntou se eu conhecia aquele poeta, aquele livro, eu tive a sorte de reler poemas que foram fundamentais para que eu chegasse à convicção, que é pura teimosia, sobre como escrever e o que escrever, não importando se o que resultar será apontado como agradável ou desagradável, cômodo ou incômodo, não importando qualquer rótulo que eventualmente o resultado possa receber.
No exemplar castigado do livro do Hans Magnus Enzensberger tem este poema:
Defesa dos lobos contra os cordeiros
Querem que o abutre coma miosótis?
O que exigem do chacal,
Do lobo, que mude de pele? Querem
que ele mesmo extraia seus dentes?
O que é que não apreciam
nos comissários políticos e nos papas,
por que olham, feito burros,
o vídeo mentiroso?
Quem costura a faixa de sangue
Nas calças do general? Quem
trincha, diante do agiota, o capão?
Quem pendura, orgulhoso, a cruz de lata
sobre o umbigo que ronca de fome? Quem
aceita a propina, a moeda de prata,
o centavo para calar-se? Há
muitos roubados, poucos ladrões; quem
os aplaude, quem
lhes põe insígnias no peito, quem
é sequioso de mentiras?
Olhem-se no espelho: covardes,
temendo a fadiga da verdade,
sem vontade de aprender, entregando
o pensar aos lobos
um anel no nariz como adorno preferido,
nenhuma ilusão burra o bastante, nenhum consolo
barato o suficiente, cada chantagem
ainda é clemente demais para vocês.
Ó cordeiros, irmãs
são as gralhas comparadas a vocês;
vocês se arrancam os olhos uns aos outros.
Fraternidade reina
entre os lobos:
andam em alcateias.
Louvados sejam os salteadores: vocês
convidam para o estupro
deitando-se no leito preguiçoso
da obediência. Mesmo gemendo
vocês mentem. Querem
ser devorados. Vocês
não mudam o mundo.
E também tem este outro (cuja coincidência com o romance que terminei em abril deste ano é assustadora):
Os Desaparecidos
Não foi a terra que os engoliu. Foi o ar?
Tão numerosos como a areia, mas não se tornaram
areia, e sim nada. Em massa
foram esquecidos. Muitas vezes, de mãos dadas,
como os minutos. Mais do que nós,
porém sem memória. Não registrados,
não decifráveis no pó, mas desaparecidos
seus nomes, colheres e solas.
Não nos fazem arrepender. Ninguém
os lembrará: nasceram,
fugiram, morreram? Sem vazios
é o mundo, porém seguro
pelos que não moram nele,
os desaparecidos. Eles estão em todas as partes.
Sem os ausentes não haveria nada.
Sem os fugitivos nada seria firme.
Sem os esquecidos nada seria certo.
Os desaparecidos são justos.
Assim também se vão os nossos.
Imagino que só exista um lugar para o escritor: o lugar o mais longe possível das aspirações dos políticos, dos governos, das sucessões familiares na política, do engajamento religioso — que no fundo, e no médio prazo, é sempre interesseiro e contabilístico — na política, do engajamento apaixonado como os dos torcedores de futebol (o suporte irascível da faceta do futebol que mencionei acima). Sempre haverá bandidos para todos os gostos, para todas as cegueiras, paixões, chiliques, para os dois lados do campo.
E a poesia — este é o momento cretino e gagá “temos de cuidar muito bem da poesia, meu querido” —, suponho, sempre dará um jeito de achar o leitor (bastam trezentas cópias de um bom livro de poesia, lembra?) e dar sinal de que a vida é uma só e sempre poderá ser mais do que a paisagem que eventualmente tremule diante dos nossos olhos e da nossa pressa. Há os detalhes, as pequenas investigações, os pequenos acertos, as pequenas cobranças, há, sobretudo, as pequenas coisas importantes, do nosso lado e do lado oposto, que nos acostumamos simplesmente a jogar fora.
Sempre fica repleto de heróis dentro das boates, a justiça (essa palavra que cabe na boca de qualquer um) é boutique, carteiraço e mão no popô dentro das boates. Todos são podres de tanta erradicação da pobreza — não importa se carenados de socialismo ou de mão invisível do mercado — dentro das boates e podres de total franqueza diante da vida dentro das boates. Bacana é pagar de passarela olha como eu sou especial e enxergo o que o resto não enxerga dentro das boates. Mas boates não são planos de voo, não são projetos de vida. Boates operam em modo apagar os detalhes.
Hoje, fico por aqui (um pouco mais perplexo do que antes); e, sim, leiam Hans Magnus Enzensberger se tiverem chance.
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Paulo Scott nasceu em Porto Alegre, em 1966, e mora no Rio de Janeiro. É autor dos romances Voláteis (Objetiva) e Habitante irreal(Alfaguara), do volume de contos Ainda orangotangos (Bertrand Brasil) e do livro de poemas A timidez do monstro(Objetiva). Seu romance da coleção Amores Expressos, Ithaca Road, foi lançado em 2013. Ele contribui para o blog com uma coluna mensal.