Por Leandro Sarmatz
Brás Cubas meets Joaquim Nabuco. Assim poderia ser definido o espírito geral do livro que Caetano Veloso publicou em 1997, quando estava com 55 anos. A idade aqui é importante. Afinal, Verdade tropical — essa mistura luxuriante de autobiografia, ensaio de nacionalidade, acerto de contas geracional e confissão pop — só poderia ter sido pensado e escrito por um artista em plena maturidade.
Não um artista qualquer, evidentemente. Tampouco uma maturidade ordinária e caricatural, dessas do pijama listrado e do chazinho de boldo diante da TV. Em plena forma mental mas sobretudo libidinal, como se pode perceber em vários momentos do livro e até mesmo em sua própria linguagem sensual, florida, roçando o barroco graças à frase cheia de torções, Caetano rememora, especula, interpreta e reescreve a sua própria história e a da cultura brasileira entre as décadas de 1960 e 1990. De brinde, uma antologia de opiniões do mais opiniático de nossos cancionistas. É um texto de fôlego (são mais de 500 páginas), dividido em quatro seções mais uma coda, que arremata alguns dos temas do livro — o conceito e o espírito do tropicalismo — e avança sobre uma vastidão de assuntos que vão desde o pop britânico (tem interesse relativo) a filmes de Woody Allen (não gosta), além de tecer comentários de caráter sociológico sobre centro e periferia.
Aliás, falando nisso: toda a carreira de Caetano Emanuel Viana Teles Veloso, nascido em Santo Amaro da Purificação, interior da Bahia, é marcada por essa — perdão — dicotomia. Desde seus primeiros discos. E isso até hoje. A própria armação geral do tropicalismo (armação, atenção, no sentido de ready made, de objeto estético produzido a partir de diversos elementos que já estavam prontos) é a tentativa de diálogo e superação da relação centro (no caso, o pop anglo-americano, o cinema da nouvelle vague, a arte do período) e periferia (o Brasil), mas isso se experimentando igualmente no ambiente interno, digamos: o Brasil litorâneo, aberto à experiência do outro e mesmo ao cosmopolitismo, e aquele Brasil profundo, intocado pela modernidade, cristalizado ainda entre influências que vão do medievo português à cultura africana. Por isso, ao longo do livro, se Caetano fala de si, de Chico Buarque, de Erasmo Carlos ou de João Gilberto (o seu claro raio ordenador), ele também está falando desse tipo de relação. Num nível pessoal, claro, mas também altamente simbólico, digamos assim. Com ressonâncias profundas no exame da civilização brasileira.
Falou-se lá no começo em Brás Cubas e Nabuco. A lembrança do defunto-autor machadiano na verdade é do crítico Roberto Schwarz (que incluiu um ensaio contundente sobre o livro no recente Martinha versus Lucrécia), a referência a Nabuco fica por conta da casa. A razão? Há no processo rememorativo do livro muito da “desfaçatez” irônica de Machado no exame das emoções pretéritas e em toda a teia de relações. Caetano se permite dizer tudo ou quase tudo. De Nabuco, autor sempre citado pelo compositor (como no disco Noites do norte, de 2000), ficou o diagnóstico de nossos males sociais, o principal deles a não superação do ethos escravista em nossas relações mais cotidianas.
Mais de quinze anos depois de sua publicação, Verdade tropical ainda ressoa e permanece excitante intelectualmente. E mais: são poucos os artistas brasileiros em qualquer área que conseguiram compor essa mescla tão bem arquitetada de pessoal e universal, de anedota e discussão estética. Caetano, hoje aos 70, continua tendo muito a dizer.
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Leandro Sarmatz é editor da Companhia das Letras e no tempo livre está tentando — sem muito sucesso, diga-se — organizar sua biblioteca. Uma vez por mês ele escreve sobre livros que foram fundamentais para sua trajetória como leitor.