Por Contardo Calligaris
1) Foi poucos meses depois da publicação de O conto do amor: Maria Ângela Jesus, produtora da HBO, telefonou e me convidou para almoçar. Era apenas para a gente se conhecer: há tempos, ela e Beto Rios, também produtor da HBO em Miami, tinham simpatia pelo que eu escrevia. Pergunta no ar: será que eu tinha alguma vontade de pensar, escrever, “fazer” algo para a televisão?
No começo de PSI, Carlo Antonini passa regularmente por uma esquina para ver o show de Isa, uma malabarista de farol. Numa dessas excursões noturnas e solitárias, ele convida Isa para sua casa, e Isa aceita. No primeiro copo de vinho, Isa pergunta, a queima-roupa, se Carlo quer transar com ela. No roteiro:
ISA
(mudando de assunto)
Então, quer o quê, moço? Transar comigo?
Carlo fica um pouco atrapalhado; esse é um jogo no qual ele prefere ter a iniciativa, o jogo da franqueza.
CARLO
Não, sim, não sei. Não é isso. Ou então é, sim. Acho você bonita, lá na esquina.
Isa acha engraçada a hesitação de Carlo.
De fato, foi um daqueles momentos mágicos, em que os atores são perfeitos.
Pois bem, naquele almoço de 2008, eu respondi à pergunta de Ângela exatamente como Carlo Antonini responderia a Isa no primeiro capítulo do seriado: “Não, sim, não sei. Não é isso. Ou então é, sim”. Quem sabe, aliás, eu tenha escrito aquele diálogo inicial entre Carlo e Isa como uma metáfora (ou uma alegoria) de minha aventura com a televisão.
De qualquer forma, na época daquele almoço, eu pensava em mais um romance de Carlo Antonini, A mulher de vermelho e branco. E talvez já sonhasse com um terceiro (que ainda pretendo escrever), sobre a infância do personagem.
Aqui, num roteiro, eu escreveria: PASSAGEM DE TEMPO.
Quando A mulher de vermelho e branco saiu, em 2011, eu estava lidando com propostas para transformar O conto do amor em filme. Há duas técnicas para isso: 1) você mantém o olhar fixo no cheque que você recebeu pelos direitos e deixa a produção fazer o filme que quiser com sua história, 2) você se mete — aliás, você pode aceitar um cheque menor ou cheque nenhum em troca de seu direito de se meter. Eu escolhi me meter.
Foi assim que, em 2011, tentado pelo cinema e frustrado pelos tratamentos que me eram propostos, lembrei-me daquele almoço de 2008, e comecei a pensar na possibilidade de um seriado para Carlo Antonini e liguei para Maria Ângela. Por que um seriado?
2) Há uma regra geral que, como todas regras, deve comportar exceções, mas que tento seguir à risca. Se você não adora cinema, não escreva cinema; se você não adora ler romances, não escreva romances; e, sobretudo, se você não adora ler poesia, não escreva poesia (pelo amor de deus) etc. O mesmo vale para ensaios de filosofia, textos clínicos de psicanálise, stand-up comedy, programas de auditório: evite ser criador de coisas das quais você não seria fruidor.
Gosto muito de seriados. À força de novas temporadas e reprises, há alguns personagens de seriado que se tornaram meus íntimos. Posso fazer, de vez em quando, orgias de uma temporada em DVD num fim de semana, mas também gosto de esperar o novo episódio semanal. Durante uma nova temporada de um seriado que me pega, sou capaz de mentir para os amigos: não posso jantar, tenho “compromisso”.
Gosto de seriados-feuilleton, que contam uma longa história que continua de capítulo em capítulo (ex. Os Sopranos), e gosto dos seriados ditos procedurais, em que cada episódio é uma história em si, uma aventura separada do mesmo protagonista (ex. House).
Antonini é psicólogo, psiquiatra e psicanalista (essa tríplice qualificação ficou explícita no seriado). Talvez isso me encorajasse a conceber o seriado como uma sucessão de casos — pouco importa que Antonini os encontrasse mais na esquina de casa do que no consultório. Mas o que me deu mesmo vontade de escrever um seriado procedural é minha predileção pelo momento da invenção do “plot”.
Escrevendo meus romances, esse sempre foi o momento mais livre e aventuroso: imaginar quem Antonini encontraria, como, onde, por quais ruas de que cidade, com quais consequências…
Gosto de inventar uma verossimilhança a partir do verdadeiro. Gosto de testar meu protagonista. Gosto de me perguntar, dias a fio, como Antonini vai sair dessa. Em suma, meu melhor momento narrativo (o mais prazeroso, em todo caso) sempre foi o de conceber e aperfeiçoar a trama. Para isso, o seriado procedural é uma festa: são treze histórias separadas — elas devem ser contadas numa hora, mas cada um deve ter a “espessura” suficiente para poder ser a alma de um romance.
Pois é, eu mal teria o tempo de vida necessário para que meu protagonista vivesse treze aventuras em treze romances. Isso, só num seriado.
3) Escrever roteiro é um trabalho facilmente coletivo. As escaletas narrativas, obviamente, ganham ao serem debatidas — isso, à condição que seu interlocutor tenha ou adquira seu mesmo carinho e sua familiaridade com o personagem. O que faria Carlo Antonini, se ele pegasse a esquerda em vez de pegar a direita? Como ele reagiria se, naquela hora…?
Tive sorte. Comecei a trabalhar com Thiago Dottori, e ainda estamos nessa. A dupla funciona porque, no roteiro, a marca que importa é a do protagonista, não a do autor. Os diálogos devem ser os que os personagens falariam. Se você escreve com um co-roteirista e a coisa funciona, é porque vocês estão escrevendo para o mesmo protagonista. Quanto às ações, é melhor deixar as questões de estilo para trás: elas devem ser, antes de mais nada, claras (para evitar mal-entendidos da direção).
Já as mudanças de roteiro que serão pedidas pela produção ou pela direção serão quase sempre a serviço das limitações (financeiras) da produção ou técnicas da direção. Por exemplo, a produção pedirá uma locação a menos, um incêndio a menos, um personagem a menos. A direção pedirá que tudo seja mais fácil: menos diálogos e mais ação, menos personagens interagindo na mesma cena etc. Pode valer a pena simplificar, mas, cuidado: como me disse um dia Beto Rios, em tese, não há nada que possa ser escrito e não possa ser filmado.
4) Outra vez, escreverei sobre os percalços e os prazeres do processo. Também devo (a mim mesmo) um ensaio sobre a relação com o ator (extraordinário) que encarnou Carlo Antonini, Emílio de Mello. Dá para imaginar o paradoxo: Antonini era (e continua sendo) uma parte de mim, agora ele é uma parte de Emílio também.
Mas há uma pergunta que me colocam e à qual posso responder com um exemplo. Perguntam: você esteve presente durante as gravações? Na verdade, querem saber se e quanto me meti.
Houve mais de um mês durante o qual fiquei ansiosamente longe do set. A última coisa que eu queria era passar uma conjuntivite viral a Emílio (e, portanto, a Carlo).
Mas tomemos como exemplo o “teaser” do primeiro episódio.
a) A locação prevista pelo roteiro supunha um córrego-esgoto e uma pequena ponte, na frente da casa de Isa; a produção achou que o córrego e a ponte eram longe demais — aceitei, um pouco a contra-gosto.
b) No roteiro, o teaser era bem mais longo e incluía uma cena final em que Isa saía da casa e encarava o pai de Isinha. A direção cortou; era o começo da pós-produção: eu fui tímido e não reagi. Não ficou claro, como eu gostaria que fosse desde o começo, que Isa tem recursos para enfrentar seu marido violento e bêbado, mesmo sem a ajuda de Carlo.
c) Caso oposto. Imprevista pelo roteiro, pela equipe de locação e pela direção, no primeiro take do teaser, apareceu uma antena de televisão, bem no meio, entre as janelas de um prédio (que são a imagem inaugural do seriado) e nossos personagens, Isinha e o marido de Isa, vindo pela rua, no meio da noite. Alguém da fotografia comentou que talvez devêssemos deslocar a grua (onde estava a câmara), para retirar aquela antena do quadro. Eu achei que ela dizia, de entrada, que a gente estava tentando dar vida televisiva àquelas existências urbanas, que apareciam lá longe, nas janelas acesas na noite. A antena ficou, e as janelas acesas na noite se tornaram a marca reconhecível do seriado.
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Contardo Calligaris é colunista da Folha de S.Paulo e autor de O conto do amor e A mulher de vermelho e branco. É criador e co-roteirista da série PSI, que estreia no dia 23 de março, às 21h, no canal HBO Brasil.