
Como peças de um quebra-cabeça, os livros Feliz ano velho e Ainda estou aqui se encaixam de tal maneira que merecem leitura simultânea. Os relatos autobiográficos do escritor Marcelo Rubens Paiva, separados por três décadas e várias viradas de página da história política do país, tratam da mesma experiência de vida do escritor de forma intensa e arrebatadora, mas sob dois ângulos: juventude e maturidade. Dor, luta e uma enorme vontade de seguir vivendo feliz e produtivo permeiam a narrativa de ambos os livros.
O primeiro, lançado aos vinte e dois anos, foi a principal ferramenta de Marcelo para superar as consequências do acidente que o deixou paraplégico aos vinte, depois de já ter perdido ainda garoto o pai Rubens Paiva para a máquina de morte da ditadura militar. O segundo, publicado agora aos cinquenta e cinco, começa inspirado pelo nascimento do primeiro filho, vai e volta no tempo impalpável da memória para chegar aos dias de hoje recontando como ele, as quatro irmãs e sobretudo a mãe, Eunice, conseguiram manter a integridade da família e das próprias trajetórias pessoais. Ainda em comum nos dois relatos, a admiração de Marcelo — único filho homem de Rubens e Eunice — pela mãe guerreira que, agora, em nova batalha pela vida e dessa vez contra o Alzheimer, reencontra a doçura nos olhos do neto Joaquim.
* * *
Feliz ano velho:
(…) Minha mãe é dessas figuras fortíssimas, que transmitem uma segurança incrível. Sabia que ela estava sofrendo pra burro por ver o filho todo estourado. O que minha mãe já passou na vida a fez ter essa cara de segurança em qualquer momento trágico. Você já imaginou uma mãe de cinco crianças ter a sua casa invadida por soldados armados com metralhadoras, levarem seu marido sem nenhuma explicação e desaparecerem com ele? Já imaginou essa mãe também ser presa no dia seguinte, com sua filha de quinze anos, sem nenhuma explicação? Ser torturada psicologicamente e depois ser solta sem nenhuma acusação? Já imaginou essa mãe, depois, pedir explicações aos militares e eles afirmarem que ela nunca fora presa e que seu marido não estava preso? Procurar por dois anos, sem saber se ele estava vivo ou morto. Ter que, aos quarenta anos de idade, trabalhar para dar de comer a seus filhos, sem saber se ainda era casada ou viúva. É duro, né? Nem Kafka teria pensado em tamanho absurdo. (…)
Essa é mais ou menos a história da minha mãe. Só que, agora, com uma tragédia a mais pela frente: o que dizer a um jovem de vinte anos, quando ele, depois de ter quase morrido, ficou paralítico? Nada. Diga apenas que o ama. E foi isso que ouvi.
— Pode deixar que a gente vai resolver tudo. Você tem uma cabeça boa, vai sair dessa fácil.
— Eu sei que vou, mas agora eu tô mais preocupado em sair daqui.
— Eu já tô transando isso pra você, fique tranquilo.
Ela nem precisaria ter dito aquilo, tranquilo era uma coisa que eu ficava só em ouvir a sua voz.
Ainda estou aqui:
(…) Minha mãe, com Alzheimer, não se lembra do que comeu no café da manhã.
Minha mãe, com Alzheimer, vê meu filho de um ano, que é a minha cara, e o reconhece. Não acha que sou eu, mas o chama de filhinho, de meu filhinho. E sempre diz:
— É a coisa mais linda.
E às vezes se confunde e diz:
— Ela é a coisinha mais linda.
Pode ser ela, a criança. Pode ser que, por ter tido quatro filhas, todos os bebês se tornem ela. Minha mãe reclama muito quando o levamos embora.
(…) Ela ergueu o atestado de óbito para a imprensa, como um troféu. Foi naquele momento que descobri: ali estava a verdadeira heroína da família; sobre ela que nós, escritores, deveríamos escrever.
Minha mãe esteve na capa de todos os jornais no dia seguinte. Com o atestado de óbito erguido, alegre. Uma batalha foi vencida. V de vitória. Ela nunca faria uma cara triste. Bem que tentaram. Por anos, fotógrafos nos queriam tristes nas fotos. Tivemos nossa guerra fria contra o pieguismo da imprensa. Com o tempo, aprendemos a selecionar qual órgão evitar e como nos portar. Éramos “A família vítima da ditadura”. Apesar de preferirmos a legenda “Uma das muitas famílias vítimas de muitas ditaduras”. Não faríamos o papelão de sairmos tristes nas fotos. Nosso inimigo não iria nos derrubar. Família Rubens Paiva não chora na frente das câmeras, não faz cara de coitada, não se faz de vítima e não é revanchista. Trocou o comando, continua em pé e na luta. A família Rubens Paiva não é a vítima da ditadura, o país que é. O crime foi contra a humanidade, não contra Rubens Paiva. Precisamos estar saudáveis, bronzeados para a contraofensiva. Angústia, lágrimas, ódio, apenas entre quatro paredes. Foi a minha mãe quem ditou o tom, ela quem nos ensinou.
Feliz ano velho:
De repente, meu pai se levantava e íamos pra água. Ultrapassávamos a rebentação, até não mais distinguir uma pessoa de um cachorro. Longe de todos, bem lá no fundo, boiávamos. Eu não conseguia, mas não me cansava. Me sentia tão seguro que nem me importava com aquele mundão d’água. Descansados, nadávamos. Cruzávamos o canal do Jardim de Alá e, quase no Country Club, já em Ipanema, a gente parava. Íamos nos aproximando da costa até pegarmos um jacaré. Eu me agarrava nas costas dele como se estivesse numa prancha, e ele, com um bruta fôlego, deixava a onda nos levar até o raso. Era a glória eu ali, sendo levado nas costas do meu pai, preocupado em não machucá-lo com minhas mãos, vencendo todas as barreiras da natureza revolta, deslizando velozmente. Eu e meu pai, juntos desafiando a vida, sabendo que unidos venceríamos, em paz um com o outro, respeitando a vontade e os desejos um do outro.
Ainda estou aqui:
O fato é que eu tinha orgulho dele. Não tinha o perfil dos meus heróis da tv ou dos gibis, mas teve o seu momento de fugir sob balas. Poucos tinham um pai assim.
Da embaixada, ele nos escreveu uma carta emocionada, que guardo até hoje, na minha pasta de documentos importantes. Nos chamava pelos apelidos que ele nos deu. E procurava explicar a conjuntura política para os filhos de três (Babiu) a nove anos (Veroca). Claro, no tom de desabafo. A carta vinha com uma ironia: o brasão da Câmara dos Deputados no papel timbrado.
Verinha, Cuchimbas, Lambancinha, Cacazão e Babiu.
Recebi suas cartinhas, desenhos etc., fiquei muito satisfeito de ver que os nenês não esqueceram o velho pai. Aqui estou fazendo bastante ginástica, fumando meus charutos e lendo meus jornais. É possível que o velho pai vá fazer uma viagenzinha para descansar e trabalhar um pouco. Vocês sabem que o velho pai não é mais deputado? E sabem por quê? É que no nosso país existe uma porção de gente muito rica que finge que não sabe que existe muita gente pobre, que não pode levar as crianças na escola, que não tem dinheiro para comer direito e às vezes quer trabalhar e não tem emprego. O papai sabia disso tudo e quando foi ser deputado começou a trabalhar para reformar o nosso país e melhorar a vida dessa gente pobre. Aí veio uma porção daqueles muito ricos, que tinham medo que os outros pudessem melhorar de vida e começaram a dizer uma porção de mentiras. Disseram que nós queríamos roubar o que eles tinham: é mentira! Disseram que nós somos comunistas que queremos vender o Brasil: é mentira! Eles disseram tanta mentira que teve gente que acreditou. Eles se juntaram — o nome deles é gorila — e fizeram essa confusão toda, prenderam muita gente, tiraram o papai e os amigos dele da Câmara e do governo e agora querem dividir tudo o que o nosso país tem de bom entre eles que já são muito ricos. Mas a maioria é de gente pobre, que não quer saber dos gorilas, e mais tarde vai mandar eles embora, e a gente volta para fazer um Brasil muito bonito e para todo mundo viver bem. Vocês vão ver que o papai tinha razão e vão ficar satisfeitos do que ele fez.
O velho pai tinha trinta e cinco anos. Queria se justificar para os filhos que, na escola, nas ruas, podiam ouvir que o pai era um comunista. Revelava um otimismo peculiar: todos ali imaginavam que o golpe não duraria muito. Pela lógica e roteiro escrito pelos próprios golpistas, eles devolveriam o poder aos civis em 1966, numa eleição ganha por um jk ainda não cassado. Meu pai não imaginava que duraria vinte e um anos. E que só vinte e seis anos depois teríamos uma eleição direta para presidente. Que o terror seria uma rotina e prática do Estado a partir de 1968, com o ai-5. E que ele estaria sob tortura seis anos e meio depois. Morrendo. E que seu corpo desapareceria.
Feliz ano velho:
Eu nunca tinha tido contato com a morte na minha vida até os doze anos. De repente, morreu meu pai, o pai do Ricardo (meu tio), uma prima, outro tio, outro tio, meu avô, meu outro avô. Tudo isso em dois anos. Foi um choque, pois, encarando-me como uma criança, nunca me contavam direito a verdade. As pessoas não entendem o que é a morte porque a morte não é para ser entendida, é para ser apenas a morte. A morte é para ser vivida, e minha família não queria que as crianças convivessem com ela.
Ainda estou aqui:
Eu era uma das crianças mais felizes do mundo.
Porém, a cortina se abriu e começou o segundo ato do espetáculo, que até então era uma farsa, mas se revelou uma tragédia. Meu pai desapareceu em 1971, no mesmo ano em que morreu meu tio mais velho, Carlos. Meu avô morreu dois anos depois. De enfarto. De tristeza. Logo depois, outro tio morreu num acidente de carro na estrada que ligava a fazenda a São Paulo. Um terremoto abriu uma fenda. O sentido de tudo se modificou. Nos perguntamos o que alimentou uma vingança tão caprichada e cruel. O que fez os deuses da felicidade se voltarem contra nós. Morreu uma prima, a mais animada, que não tinha nem dezoito anos, de uma doença misteriosa. Depois outro primo, um menino lindo, num acidente de moto em Santos.
A tragédia dos Paiva foi um contraste com a alegria das décadas anteriores. A família ruiu: não tinha estrutura emocional para administrar tudo aquilo.
Feliz ano velho:
No dia 20 de fevereiro, o ministro da Justiça Alfredo Buzaid disse pra minha mãe que meu pai tinha sofrido “alguns arranhões”, mas que voltaria em breve para casa. As reuniões do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana passaram a ser secretas depois do caso. Mesmo sob censura, a imprensa pegava no pé. Finalmente, no dia 24 de fevereiro, sai no Diário Oficial da União o que até hoje é a versão do Exército:
SEGUNDO INFORMAÇÕES DE QUE DISPÕE ESTE COMANDO, O CITADO PACIENTE, QUANDO ERA CONDUZIDO PARA SER INQUIRIDO SOBRE FATOS QUE DENUNCIAM ATIVIDADE SUBVERSIVA, TEVE SEU VEÍCULO INTERCEPTADO POR ELEMENTOS DESCONHECIDOS, POSSIVELMENTE TERRORISTAS, EMPREENDENDO FUGA PARA LOCAL IGNORADO…
Em outras palavras, ele tinha fugido. Foi a versão mais idiota que já inventaram, mas o que fazer? Logo depois veio a censura da imprensa sobre o caso, foi julgado um habeas corpus numa sessão secreta do Superior Tribunal Militar (obviamente negado), sessão essa a que minha mãe esteve presente, sozinha (só com a ajuda do tio Rafael). Não havia provas. O jeito foi esperar.
Continuamos morando no Rio e começaram a chegar as informações mais terríveis: ele tinha sido torturado e morrera. “Mas como? Não existe tortura no Brasil.”
Doce ilusão, estava-se torturando gente como nunca e havia-se criado uma tática mais eficiente: mata-se o inimigo, depois some-se com o corpo.
Ainda estou aqui:
Sabendo que minha mãe e minha irmã Eliana estavam nas mesmas dependências do doi-Codi em 21 de janeiro de 1971, de capuz, prontas para os torturadores caírem em cima, sabendo que minha mãe e irmã não tinham a menor ideia do que faziam ali, ele deve ter sofrido, ele, o irredutível inconformado, que não soube tomar as precauções devidas. Inimaginável o seu sofrimento. Talvez a dor da tortura não chegasse aos pés da descoberta de que tomou decisões erradas, arriscou a vida da mulher e dos filhos, crianças ainda. Deve ter sido a sua derradeira tortura.
Quem tem um filho faz de tudo para se preservar, para dar o suporte e acompanhar o crescimento daquele que mais ama. O que eu fiz? Por quê? Onde você estava com a cabeça? Agora não dá para voltar atrás. Agora não dá para fazer nada. Agora não dá para evitar a dor. Agora não dá para salvar minha família. Agora não dá para fugir da morte. Eu vou morrer, sinto que vou, espero que me perdoem. O que fiz prova minha vulnerabilidade, falhas do meu caráter, que pôs tudo a perder e causa muito sofrimento. Não tenho palavras, Eunice, Verinha, Cuchimbas, Lambancinha, Cacareco, Babiu… Perdão. Não verei mais vocês crescerem, não estarei mais ao lado de vocês, não consigo mais proteger vocês, não vou mais brincar com vocês, escutar suas risadas, correr atrás, nadar, não acompanharei vocês na escola, nossa casa maluca não sairá do papel, não saberei que faculdade farão, que diploma pegarão, não acompanharei vocês na vida profissional, não conhecerei seus filhos, meus netos, não verei meus netos crescerem, não estarei ao lado deles, não os protegerei, não vou brincar com eles, escutar as risadinhas, correr atrás, nadar, não acompanharei eles na escola, e como é triste saber que tudo isso acaba, que meu momento com vocês foi tão curto, que não pude aproveitar mais, e me arrependo, me arrependo de não ter passado tempo apenas com vocês, que pena que estou indo embora, que triste que não posso ficar, não me deixam ficar, é inevitável que eu vá, eu não queria, eu não queria, estou tão triste. Tenho que morrer agora.
Morreu repetindo o seu nome. Meu nome é Rubens Paiva, meu nome é Rubens Paiva, meu nome é Rubens Paiva, meu nome é Rubens Paiva, meu nome é Rubens Paiva…
Dizem que foi torturado ao som de “Jesus Cristo”, de Roberto Carlos, música que a minha irmã Eliana se lembra de ter escutado enquanto estava lá.
(…)
Imaginar este sujeito boa praça, um dos homens mais simpáticos e risonhos que muitos conheceram, aos quarenta e um anos, nu, apanhando até a morte… É a peste, é a peste, Augustin. Dizem que ele pedia água a todo momento. No final, banhado em sangue, repetia apenas o nome. Por horas. Rubens Paiva. Rubens Paiva. Ru-bens Pai-va, Ru… Pai. Até morrer.
Feliz ano velho:
Enquanto alguns pais levavam seus filhos pra jogar tênis, o Rubens Paiva levava o Marcelo pra Pavuna, um bairro operário da Zona Norte, onde ele estava construindo umas casas populares. Eu adorava, ajudava a fazer cimento, levantar muro, passar argamassa nas paredes. Aprendi a comer feijão com farinha na marmita, a beber café mineiro no copo, usar capacete de obra e carregar martelo na cintura.
Todo 1º de maio os candangos faziam festa nos canteiros. E, como era meu aniversário, sempre tinha um bolo pra mim. Ganhava os presentes mais incríveis, desde um martelo mirim até um chaveiro de fita métrica. Às vezes, eu ia pro escritório dele no centro da cidade e ficava brincando de engenheiro. Sentava naquelas pranchas enormes e desenhava pontes. Quando mostrava, meu pai sempre dava uns palpites e corrigia. Acho que foi assim que nasceu a vontade de estudar engenharia.
Meu pai me ensinou a andar a cavalo.
Meu pai me ensinou a nadar.
Me incentivou a ser moleque de rua.
Me ensinou a guiar avião (tinha um na firma dele e, depois de decolar, eu pegava no manche e ia mirando até São Paulo).
Mas meu pai não pôde me ensinar mais.
Ainda estou aqui:
Meu filho nasceu às 8h45. Me lembro e me lembrarei de cada segundo do seu parto. Me lembro de ver sua cabecinha saindo. De ele balançar os bracinhos na luz. De eu chorar sem sair lágrimas. Ou de sair lágrimas sem eu chorar. Duvido que me esquecerei de algum detalhe desse dia milagroso. Existir é passar de um estado para outro: tenho fome, como, tenho frio, me agasalho, estou alegre, e agora triste, e depois estarei alegre, penso e chego a conclusões, me lembro de algo que me toca o coração, sinto um cheiro que me lembra alguém, sinto um gosto que me lembra um lugar, me emociono. Emocionar-se é passar de um estado para o outro. Você vê um quadro hoje. Vê o quadro de novo daqui a dez anos, o revê daqui a vinte, trinta, quarenta… É o mesmo quadro com a mesma moldura, na mesma parede do mesmo museu, com a mesma luz, é você, mas cada vez será visto de outra forma. Cada vez ele nos conta uma história. O quadro não mudou. Já nós…