Por Miguel Del Castillo
Um general de farda, em cadeira de rodas, vai à formatura da neta. Colocam-no em cima do palco, em posição de destaque. Ouve um discurso em que o orador, entusiasmado, cita-o como inspiração, localizando eventos históricos, guerras, batalhas. São palavras “que para ele nada queriam dizer” mais, pois tinha depositado no esquecimento algumas porções do passado. Ele tenta resistir, mas as palavras o tomam “por alvo como armas de fogo”; aquelas velhas palavras começam a se mover “agitadas pelo interior de seu cérebro, como se tentassem se desvencilhar de onde estavam para adquirir vida própria”. É seu “Último encontro com o inimigo” — título desse conto de Flannery O’Connor — e, descobrimos, o inimigo são palavras que estavam perdidas em algum lugar da memória.
Às vezes penso que nós, ou pelo menos eu e meus companheiros de geração, vivemos como esse general: ficamos indo e vindo entre as palavras, lembrando e nos esquecendo delas, selecionando, deletando, postando algo na internet e lendo uma besteira que alguém compartilhou aqui, um link, outro link, uma página curtida, propagandas direcionadas. No fim do dia, não nos lembramos de quase nada disso, mas às vezes algo permanece e acaba sendo importante. Estamos em meio a muitas palavras, nossas e de outros, que nos atacam, ou nos servem de distração, ou ainda de refúgio.
Um trecho desse conto da Flannery é uma das epígrafes do Restinga. Comecei a escrevê-lo também entre palavras: à noite, entre uma jornada e outra de edição de livros na Cosac Naify (entre a não ficção e a ficção), ou nos fins de semana, entre São Paulo e o Rio de Janeiro, de onde vim, onde escrevi um pouco do livro e para onde eventualmente volto. Estar entre, para mim, sempre foi condição; minha mãe dizia que eu devia ser diplomata, pois inevitavelmente ficava entre amigos que brigavam no colégio, entre arquitetura e literatura (entre a faculdade de arquitetura e umas eletivas de letras, e uma monografia que tentava juntar tudo), entre uma família brasileira e outra uruguaia, entre pais separados. Fico me perguntando se isso é exclusividade minha, ou se todo mundo não vive, de alguma maneira, nesse entre.
Esse tema — estar entre — se tornou um dos principais motes do livro. Uma restinga é um braço de terra que está entre duas quantidades enormes de mar, e de alguma forma se mantém ali; parece frágil, mas é forte justamente por isso: por parecer débil e, ainda assim, resistir. Muitos personagens do livro estão em trânsito — viajar é uma forma de estar entre —, lidando com perdas — o luto, por alguém ou por uma relação, é um momento entre a vida preenchida e a vida com uma ausência –, equilibrando-se na tentativa de se lembrar de algo, quase falando o que precisam dizer.
Mas todo mundo que está entre precisa de um respiro, e o meu foi o mar, outro elemento unificador do livro. Morar em São Paulo, espremido entre prédios, dá saudade de ter um horizonte sempre à vista. O mar é esse lugar em que você olha para um lado, olha para o outro, olha para frente e não vê limite algum. E, ao mesmo tempo, funciona como limite, marcando onde a cidade termina. Os contos do Restinga se organizam em torno, passam por ou terminam na praia — num biquíni, na marca serrilhada dos caminhões de lixo na areia, num topless visto pela primeira vez.
Minha cabeça de arquiteto “não praticante” tem um funcionamento bem visual, e a ideia era que de cada conto surgisse uma imagem síntese (ou quase), que muitas vezes está indicada no próprio título: restinga, colônia, arraial, violeta, cruzeiro, laguna. São imagens, porém, novamente, são também palavras que emergem. O ovo ou a galinha: pensamos primeiro na imagem de uma restinga ou na imagem da palavra restinga? A “Procura da poesia” de Drummond passava por contemplar as palavras — sua forma, seu formato —, que, olhadas assim, revelariam suas “mil faces secretas sob a face neutra”.
Será que não é a isto que temos de nos reportar, sempre, sobretudo quando o cinismo bate à porta: ao dia em nossa infância ou adolescência em que pela primeira vez ficamos entre palavras, e um livro explicou algo que sentíamos e não sabíamos elaborar, numa operação inversa à do general da Flannery?
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RESTINGA
Sinopse: Neste volume de contos, o leitor encontrará histórias que alternam entre a delicadeza, a solidão e as relações de amor e amizade. É a filha que cuida da mãe doente, cujo sonho é conhecer a restinga de Marambaia, no Rio, numa visita que iluminará o passado familiar e abrirá caminhos para o futuro. Ou da mulher que toma um cruzeiro no Atlântico e passa a rever sua vida pregressa sob um novo e inusitado prisma. Ou ainda do garoto que visita o pai em Cancun, uma viagem cheia de mistérios e incompreensões, o mundo adulto visto pelas frestas de uma infância incomum. Ao fim do livro, a novela “Laguna” amplia e aprofunda os temas do autor, numa vertiginosa narrativa sobre a paixão, as viagens, os laços que nos unem e a fragilidade das nossas amarras.
Eventos de lançamento:
Rio de Janeiro — Quinta-feira, 29 de janeiro, às 19h, na Livraria da Travessa Ipanema — Rua Visconde de Pirajá, 572.
São Paulo — Terça-feira, 3 de fevereiro, às 19h, na Livraria da Vila — Rua Fradique Coutinho, 915.
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Miguel Del Castillo nasceu no Rio de Janeiro, formou-se em arquitetura pela PUC-Rio e mudou-se para São Paulo em 2010, onde atualmente é editor da Cosac Naify. Foi editor da revista Noz, de arquitetura e cultura, e recebeu o prêmio Paulo Britto de Poesia e Prosa com o conto “Carta para Ana”, publicado na Antologia de prosa Plástico Bolha (Editora Oito e Meio, 2010). Foi escolhido um dos vinte melhores escritores jovens brasileiros pela revista Granta. Restinga foi lançado em janeiro de 2015 e é o seu primeiro livro.