Por Luiz Schwarcz

Na Flip de 2007 eu estava na plateia da mesa literária “A vida como ela foi”, que reunia os autores Fernando Morais, Paulo Cesar de Araújo e Ruy Castro em torno do tema das biografias não autorizadas. Foi quando ouvi pela primeira vez ao vivo Paulo Cesar de Araújo falar sobre a apreensão de seu livro Roberto Carlos em detalhes, publicado em novembro de 2006. Alguns meses após a Flip, ainda impressionado com o que lhe havia ocorrido, convidei-o para uma conversa e ofereci-me para publicar algum novo trabalho dele. Estava interessado em sua pesquisa sobre música brasileira, mas também procurava prestar, como editor, solidariedade a um autor injustamente tolhido do resultado de seu trabalho.
Do que me lembro da nossa conversa, Paulo mencionou a possibilidade de publicar as entrevistas que fizera para seus livros anteriores, e uma ideia curiosa: um pequeno livro narrando sua amizade com João Gilberto, que começara com longas conversas por telefone (do orelhão em frente ao prédio do artista). Imaginando ser impossível encontrar o grande inovador da música brasileira no século XX, Paulo Cesar surpreendeu-se ao ser atendido ao telefone pelo pai da Bossa Nova, e ainda mais com a relação que desenvolveu a partir daí com o cantor — ao lado de Roberto Carlos, talvez seu maior ídolo .
Depois de alguns contatos em que na verdade João mais o entrevistou do que o contrário, perguntando sobre sua infância e vida baianas, Paulo foi convidado a assistir ao show de reinauguração do famoso teatro Castro Alves em Salvador, com direito ainda a um ingresso para seu pai. O inventor da Bossa Nova tentava assim reconciliar Paulo Cesar com o progenitor que abandonara o lar e com quem o autor de Roberto Carlos em detalhes perdera completamente o contato.
Fiquei entusiasmado com a ideia até que, alguns meses depois, Paulo Cesar apresentou outra proposta: gostaria de contar suas memórias dos últimos anos, narrando como começou a pesquisa para a biografia de Roberto Carlos, até chegar à sua proibição. O argumento de Paulo era forte:
— Essa é a minha história, Luiz, ninguém pode tirá-la de mim.
Topei a empreitada. O livro atendia bem às minhas duas intenções iniciais: trazer Paulo Cesar para a Companhia das Letras e marcar posição na luta pela liberdade das biografias.
Paulo atrasou consideravelmente a realização da encomenda. Duas vezes por ano, Marta Garcia — então editora do livro — e eu ligávamos cobrando notícias, mas a obra não ficava pronta.
O livro que chega hoje às livrarias é mais do que o resultado final desse trabalho de cinco anos. Parece que Paulo intuía que o tempo tornaria o livro ainda mais necessário. Muitos passos foram dados em direção à conquista da liberdade para os livros de não ficção no Brasil — uma conquista ainda não consolidada, por sinal —, numa luta liderada por muitos escritores e intelectuais, e da parte dos editores capitaneada por Roberto Feith, da Objetiva, meu futuro companheiro de edições.
O réu e o rei sai por absoluta coincidência com a nova lei de biografias aprovada pela Câmara dos Deputados, a ser votada no Senado (em paralelo, corre no Supremo Tribunal Federal uma ação direta de inconstitucionalidade proposta pela Associação Nacional dos Editores — ANEL). Com essa publicação, procuramos relembrar um período de injustiças na qual outros escritores e editores — é importante não deixar de citar Ruy Castro, que conosco pelejou na justiça por muitos anos para ter sua biografia de Garrincha circulando livremente — foram cerceados. Serve como testemunho das dificuldades para escrever biografias independentes no Brasil.
Com ele a Companhia das Letras procura contribuir ativamente para a consolidação do direito do cidadão brasileiro ao conhecimento de fatos relevantes da vida das suas figuras públicas.
* * * * *
Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, entre outros. Ele contribui para o Blog da Companhia com uma coluna mensal chamada Imprima-se, sobre suas experiências como editor.